Os atuais desafios da indústria de fundos Valor Econômico
Flávio Lugão, Eduardo Andrade e Lucas Rezende É inegável que o desempenho econômico do Brasil em 2019 não vem atendendo às expectativas do mercado. Em que pese a agenda liberal do atual governo e o otimismo pela aprovação da reforma da previdência, o país ainda não deixou para trás uma das mais relevantes crises de sua história. Todavia, também é inegável que estamos caminhando no sentido da liberalização e desenvolvimento do mercado de capitais, ainda que não na velocidade desejada. Nesse contexto, a indústria de fundos de investimento pode assumir papel de destaque para que a economia brasileira possa, de fato, retomar seu crescimento. Atingimos, em 2019, a marca histórica de R$ 5 trilhões investidos em fundos de investimento, o que representa aproximadamente 70% do PIB brasileiro. O crescimento definitivo dessa indústria, todavia, ainda passa pela solução de alguns entraves há muito tempo conhecidos pelo mercado. Esse movimento já se iniciou com a Medida Provisória nº 881/2019 - conhecida como "MP da Liberdade Econômica"-, mas ainda temos muito a avançar. O primeiro desafio da indústria de fundos consiste no regime de responsabilização dos cotistas. No Brasil, fundos de investimento não possuem personalidade jurídica e, por isso, seus cotistas podem ser obrigados a realizar novos aportes em caso de prejuízos. A ausência de delimitação de responsabilidade sempre foi um entrave para a atração de novos investidores ao mercado, sobretudo estrangeiros. Nas principais jurisdições utilizadas para a estruturação de investimentos via fundos - Estados Unidos, Luxemburgo, Ilhas Cayman - a responsabilidade do investidor é, em regra, limitada ao capital investido, conferindo maior segurança e tornando-as mais atrativas aos investidores. Aplausos para a MP da Liberdade Econômica nesse ponto. Uma de suas propostas é incluir no Código Civil dispositivo que permita a limitação da responsabilidade dos cotistas, desde que previsto no regulamento do fundo. Sabe-se que a MP ainda precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional e posteriormente regulamentada pela CVM, mas, ao que tudo indica, superaremos esse ponto que sempre nos distinguiu, negativamente, da prática internacional. A importância exacerbada que a regulamentação atual confere aos administradores fiduciários de fundos é outro tópico importante. No início da indústria, o investimento em fundos era, em sua maioria, oferecido por instituições financeiras encarregadas de exercer praticamente todas as atividades inerentes ao funcionamento do fundo. Com base nesse modelo, a regulamentação vigente prevê o administrador fiduciário como figura central do fundo. Ocorre que o disposto na norma não mais se alinha com a prática de mercado. Frequentemente, são os gestores de recursos os responsáveis por idealizar e estruturar os investimentos dos fundos. Assim, ao conferir certos deveres e responsabilidades ao administrador fiduciário, nossa regulação acaba aumentando sua exposição a risco e, consequentemente, desestimulando a prestação desse serviço. A relação risco/retorno está desbalanceada para o administrador fiduciário: apesar de ser a figura com a maior responsabilidade no fundo (incluindo fiscal), é, via de regra, aquele que recebe a menor remuneração. Vale destacar que em outras jurisdições, o administrador fiduciário é figura interna do fundo, sem papel de destaque perante autoridades e investidores. Precisamos, ainda, solidificar a aplicação de regras que regulam benefícios tributários. Falta segurança jurídica na aplicação dos conceitos de beneficiário final para produtos incentivados, como FIPs para investidores estrangeiros, ou mesmo regras de isenção para pessoas físicas que investem em certos fundos listados em bolsa. Aqui, residem as discussões mais acaloradas dos últimos meses na indústria, tendo crescido as disputas com o Fisco. Carecemos também de uma lei geral para regular especificamente os fundos de investimento. Com exceção dos fundos imobiliários e de leis de cunho fiscal que disciplinam certos produtos, os principais dispositivos legais aplicáveis aos fundos são o Código Civil e a Lei do Mercado de Capitais. Esta cita os fundos de investimento em apenas dois artigos. Já o Código Civil sequer lhes faz referência. A contribuição do Código Civil consiste na importação das regras para condomínios civis, aplicáveis aos fundos em virtude de sua natureza condominial no Brasil, as quais muitas vezes não se coadunam com o modo de funcionamento dos fundos. Apesar dos pontos abordados, são inegáveis os avanços da indústria de fundos nos últimos anos, com destaque para o crescente alinhamento entre CVM, Anbima e ABVCAP e a própria edição da MP da Liberdade Econômica - e sua posterior conversão em lei, caso não haja surpresas em sua tramitação no Congresso. Fato é que, para superarmos os entraves, não há modelo estrangeiro a ser copiado ou um único caminho a ser percorrido. É certo, porém, que as idiossincrasias do modelo brasileiro precisam ser revistas para aproximarmos nossa indústria aos padrões internacionais e assim torná-la cada vez mais atrativa para investidores nacionais e estrangeiros. Com isso, facilitaremos a atuação daqueles que financiam a economia real - papel de destaque da indústria de fundos - e atenderemos às projeções de crescimento para o Brasil nos próximos anos. Flávio Lugão, Eduardo Andrade e Lucas Rezende são, respectivamente, sócio e advogados do escritório Mattos Filho.
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