As desventuras da repatriação de ativos Valor Econômico
Cesar Janoti, Gilberto Frigo Jr. e Thiago Sorrentino O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), que permitiu a repatriação de ativos de origem lícita não declarados ou declarados incorretamente, sempre foi objeto de desconfiança para advogados e contribuintes, sobretudo em razão dos turvos limites da anistia proposta e dos critérios de exclusão do regime. Apesar das incertezas (ainda existentes), o RERCT foi a opção escolhida por milhares de contribuintes que, premidos pela forte crise econômica que há muito nos assola, vislumbraram uma possibilidade razoável de regularizar e dispor de seus bens e recursos mantidos no exterior, bem como de se beneficiarem da extinção da punibilidade de determinados crimes. Superada a fase arrecadatória decorrente diretamente da Lei de Repatriação, na qual o poder público manteve-se dócil com o contribuinte, há indícios consistentes de que o atual governo mudará de postura e utilizará dados extraídos da Declaração de Regularidade Cambial e Tributária (Dercat) tanto para fins fiscais quanto penais, o que contraria a própria lei. O atual titular do Ministério da Justiça e Segurança Pública já informou que uma das prioridades da sua pasta será investigar a origem dos R$ 174,5 bilhões repatriados por meio do RERCT. De certo modo, essa apuração será facilitada pela nova formatação do Ministério da Justiça, que assumiu o comando do Conselho de Controle de Atividades Financeiras e o integrará aos órgãos de investigação criminal que já compõem a sua estrutura. Esta integração entre órgãos fiscais e de persecução penal pode, por um lado, otimizar os meios estatais de apuração de ilícitos, mas, por outro, pode acarretar violação da reserva de jurisdição necessária à quebra de sigilos bancário e fiscal. Isto já é observado quando informações sigilosas obtidas diretamente por agentes fiscais tributários, sem autorização judicial, mediante uso das prerrogativas conferidas pela Lei Complementar nº 105/2001, são compartilhadas com o Ministério Público para fins penais, deturpando a verdadeira finalidade do permissivo legal e fomentando uma verdadeira indolência investigatória, posto que qualquer quebra de sigilo sempre deveria ser o último meio de obtenção de provas. Outro ponto sensível da lei de repatriação diz respeito à possibilidade de instauração ou continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto da regularização a partir de quaisquer evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte. Assim, devido à sujeição do Brasil à Lei Estadunidense de Conformidade Tributária de Contas Estrangeiras (Foreign Account Tax Compliance Act) e ao Padrão de Declaração Comum (Common Reporting Standard) da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, as informações tributárias dos contribuintes brasileiros com ativos em diversos países serão compartilhadas automaticamente com as autoridades fiscais brasileiras e, por conseguinte, tais dados poderão ser utilizados para fins penais mesmo em relação aos recursos e bens objetos da regularização obtida pelo RERCT. Se há legítima insegurança sobre a utilização das informações contidas na Dercat para fins penais, no campo tributário não é diferente. As exceções sutilmente inseridas na Lei da Repatriação acentuam uma indesejada insegurança jurídica nos contribuintes que, ao confiarem na boa-fé da administração pública e no caráter anistiador do RERCT, podem ter caído em um engodo fiscal e criminal. Ora, quando se tem uma transação entre poder público e contribuinte, o que se busca é a regularização de algumas situações elencadas pela legislação por meio de concessões mútuas, objetivando a arrecadação e, até mesmo, o ingresso de valores no país. Tal foi o objetivo pretendido pela Lei nº 13.254, de 13 de janeiro de 2016, que tinha como pressuposto o sigilo das informações prestadas, sob pena dos interessados produzirem provas contra si mesmos. Uma vez feita a adesão, o optante pelo RERCT manifestou sua vontade em divulgar condutas, com a garantia de que seus dados não seriam utilizados para finalidades diversas das previstas na lei instituidora do regime. Considerar algo diferente disso é descumprir preceitos fundamentais, como o da legalidade e moralidade administrativa. Importante deixar claro que não estamos aqui querendo isentar os contribuintes de toda e qualquer responsabilidade, mas que esta fique circunscrita ao quanto declarado e nos termos rigorosamente delineados pela lei instituidora do regime em questão. A grosso modo, não se pode usar de informações confidenciais com intuito meramente especulativo sem que haja a obediência aos tramites normais. Caso contrário estaríamos diante do "tudo pode", como por exemplo obter dados antes mesmo do início de qualquer investigação e, ainda, na pendência de Dercat ainda não homologada. Os contribuintes e seus auxiliares técnicos devem permanecer atentos a esses sinais de tribulação, que ao final poderão configurar uma verdadeira arapuca penal e tributária. Cesar Oliveira Janoti, Gilberto Frigo Jr. e Thiago Buschinelli Sorrentino são, respectivamente, mestrando em ciências jurídicas na Universidade Autônoma de Lisboa, especialista em direito penal e processual, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie; especialista em direito tributário pela PUC-SP; mestre em direito do Estado pela PUC-SP, doutorando em ciências jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa, professor do IBMEC-DF e do IDP-DF.
|